014 – O panteísmo urbano

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Não é novidade ouvir das pessoas que moram em cidades grandes que elas não possuem religião. Por outro lado, os moradores da urbe não possuem religião em seu discurso, mas a possuem de fato, e fiquei surpreso ao ler um texto de Luis Fernando Verissimo, no Estadão de janeiro de 2008, em que descreve sua teologia pessoal:

“Invejo quem tem fé, mas não posso deixar de pensar que a minha religião particular, uma espécie de panteísmo urbano (devoção por pastéis de carne e boas livrarias e a crença de que há um deus, sim: o deus do Oboé, que além de ser um instrumento divino, é o que afina todos os outros) é a mais sensata”.

Luis Fernando Verissimo

Nesse autoexame irônico, o cronista descreveu de maneira “sublime” a religiosidade do homem moderno, chamado panteísmo urbano.

Se usamos o mesmo dicionário, entendemos por panteísmo a ideia de que deus, ou os deuses, identificam-se com o mundo sem distinguir-se dele.

Se no panteísmo das comunidades “da floresta” os deuses eram identificados com animais, plantas, elementos da natureza; na cidade, os deuses são “pastéis”, “boas livrarias” e “instrumentos musicais”. Essa religião mais “sensata” consegue superar a loucura da anterior.

Se Paulo estava abismado com o “coração insensato” e obscurecido daqueles que adoravam animais e aves, em Romanos 1, que diria ao ver que os deuses caíram dois níveis nos setores da economia, que fizemos de deus os elementos do setor terciário (produtos e serviços) da sociedade?

Isso acontece em consequência de terem alterado o próprio conceito de deus. Os deuses da cidade são os elementos do cotidiano que dão sentido presente a nossa vida por meio do prazer momentâneo, e por isso há, inclusive, uma hierarquia teológica pessoal, do pastel à boa livraria, abaixo da arte, ou da música, conforme o perfil do religioso.

Numa comunidade antiga, deuses eram aqueles que causavam medo, e com quem negociávamos para se livrar dos infortúnios; no mundo urbanizado, em que os heróis humanos expurgaram seus medos (ou escondem-se deles), sua vida, vazia de qualquer sentido, busca encontrá-lo no cotidiano prazeroso, em seus templos (shoppings, hipermercados, TV por assinatura), com seus ritos (vestir-se bem, comer pipoca todas às sextas) e com suas oferendas e sacrifícios (trabalhar duro, cartão de crédito, dívidas). Tudo isso porque a única esperança que resta é esta vida, presente, real, palpável e, sobretudo, sofrível. Deste modo, parece-nos sensato mesmo, tal como chegou à mesma conclusão o próprio Salomão, ao observar a vida “debaixo do sol” como total enfado e inutilidade, e que basta que nos deliciemos na vida, pois nada mais nos espera além dela.

Paulo, no entanto, milhares de anos e de páginas depois, com o Mistério revelado através de Jesus Cristo, encontra a resposta à loucura: “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” – 1a Co.15.9.

Assim chegamos ao coração do problema: destituído o deus único, com sua verdade absoluta, os metropolitanos caem na mais pura desesperança, e se vêem entregues às suas “paixões desonrosas” ou, em sua maior sensatez, a prazeres cotidianos e (certamente) mais covardes, perpetuando um pouco mais seus dias de “cadáver adiado que procria”, como diria o poeta português Fernando Pessoa.

Mas ainda é preciso perguntar: não estaríamos nós, ditos crentes, rivalizando com o nosso cristianismo dominical, vivendo esse panteísmo urbano no dia-a-dia, tal qual o povo de Judá, de quem foi dito:

“Assim, estas nações temiam o Senhor, mas também suas imagens esculpidas; seus filhos e seus descendentes também fazem até o dia de hoje como fizeram seus pais”

2a Reis 17.41.

Ou, do contrário, podemos dizer diante de Deus que em cada ato do dia podemos nos regozijar em Cristo Jesus, e que cada decisão de nossa vida visa a sua Glória?

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