Dificilmente um missionário ainda não tenha ouvido uma das frases mais conhecidas de missões, dita pela missionária americana aos índios das selvas amazônicas, Sophie Muller:
“Eu não tive um chamado. Eu li uma ordem e a obedeci”.
Ao que parece, essa frase foi dita poucos anos antes da missionária falecer, por volta da década de 90, em uma entrevista em que foi perguntado a ela como havia sido o seu chamado missionário – uma pergunta que todo missionário está fadado a responder pelo menos uma vez na vida.
Daí ela respondeu com a frase em questão, e a frase, digamos, viralizou.
A frase viralizou pois consegue sintetizar uma verdade bíblica muito importante. A verdade que os missionários não precisam ser parados por uma forte luz num caminho qualquer para Damasco, nem ouvir a própria voz de Deus dirigindo-os a determinado campo. Essa frase de Sophie Muller traz consigo a ideia de que o trabalho missionário nada mais é que obediência à Palavra de Deus, e não um trabalho extraordinário que foi separado para alguns. O trabalho missionário, diz a frase, é uma ordem de Deus dada por Jesus nas Escrituras a todos os crentes. Quem está envolvido no trabalho missionário está obedecendo à ordem de Jesus, quem não está, está sendo desobediente.
Muito bem. A frase é incrível, e deve mesmo ser estampada em camisetas. Mas gostaria de trazer à discussão uma outra frase, da mesma Sophie, desta vez registrada em seu livro autobiográfico “Sua voz ecoa nas selvas”. Logo no início do livro, ela está descrevendo seu processo de conversão, enquanto estudante de artes em Nova York. Daí, ela descreve uma transformação que ocorreu nela logo depois dessa conversão, foi a seguinte:
“Toda ambição de ser uma artista famosa ficou de lado. Perguntei a Deus, em oração, o que ele queria que eu fizesse da minha vida. Deus respondeu claramente fazendo-me sentir responsável para ir a uma tribo que nunca ouvira o evangelho. Não havia como fugir”.
Eu acho esse trecho ainda mais bonito que a frase da entrevista. Acontece que ambas parecem se contradizer. Afinal, Sophie foi ao campo simplesmente porque leu a Bíblia e decidiu arbitrariamente se aventurar nas selvas colombianas da década de 40, ou “Deus respondeu claramente”?
Eu creio que, embora possam parecer contraditórias, pelo contrário, elas se completam e revelam algo especial sobre o chamado missionário.
Quando o apóstolo Paulo está descrevendo o seu próprio chamado missionário para a Espanha, no final de sua carta aos Romanos, ele descreve tomado de uma “santa ambição”, conforme chamou John Piper, de uma santa paixão, de um foco intenso e uma convicção clara de chamado. Ele diz:
“A respeito de alguns assuntos, eu lhes escrevi com toda a franqueza, como para fazê-los lembrar-se novamente deles, por causa da graça que Deus me deu, de ser um ministro de Cristo Jesus para os gentios, com o dever sacerdotal de proclamar o evangelho de Deus, para que os gentios se tornem uma oferta aceitável a Deus, santificados pelo Espírito Santo” (Rm. 15.15-16)
O apóstolo Paulo sabe que a direção ministerial que Deus havia lhe dado era de anunciar o evangelho aos gentios, e ele seguia focado nesse chamado:
“Assim, desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico, proclamei plenamente o evangelho de Cristo. Sempre fiz questão de pregar o evangelho onde Cristo ainda não era conhecido, de forma que não estivesse edificando sobre alicerce de outro.” (Rm.15.19-20)
Perceba que Paulo não estava dizendo que todos deveriam pregar o evangelho onde Cristo não era conhecido. Ele já havia afirmado muito bem que aquilo era a “graça que Deus me deu”. Paulo entendia muito bem esse direcionamento específico e individual:
“Afinal de contas, quem é Apolo? Quem é Paulo? Apenas servos por meio dos quais vocês vieram a crer, conforme o ministério que o Senhor atribuiu a cada um. Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fazia crescer; de modo que nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que efetua o crescimento. O que planta e o que rega têm um só propósito, e cada um será recompensado de acordo com o seu próprio trabalho.” 1Co.3.5-8.
Mesmo assim, voltando à carta aos Romanos, o apóstolo Paulo faz questão de apresentar a base do seu chamado aos gentios nas Escrituras, e não em sua convicção pessoal:
“Mas antes, como está escrito: “Hão de vê-lo aqueles que não tinham ouvido falar dele, e o entenderão aqueles que não o haviam escutado”.” (Rm.15.21).
Deste modo, Paulo sabe que é um servo de Deus para anunciar o evangelho aos gentios tanto pelo chamado geral das Escrituras quanto pelo direcionamento individual dado por Deus a ele.
O chamado geral todos temos. Todos, de alguma maneira, deveremos responder à Grande Comissão dada à igreja. Mas quanto a esse direcionamento específico, eu penso que Deus concede a aqueles que perguntam, como fez Sophie.
Mas mesmo esse direcionamento específico não é tão específico assim. O direcionamento específico de Paulo era pregar aos gentios, mas isso não significava que todos os passos de sua jornada estavam claros para ele.
Só neste capítulo, podemos ver Paulo fazendo os seus planos:
“visto que há muitos anos anseio vê-los, planejo fazê-lo quando for à Espanha. Espero visitá-los de passagem e dar-lhes a oportunidade de me ajudar em minha viagem para lá, depois de ter desfrutado um pouco da companhia de vocês.” (Rm.15.23,24)
Mas Paulo não sabia que ele seria torturado em Jerusalém, que ficaria mais de 2 anos preso em Cesaréia, que ficaria meses à deriva no Mediterrâneo, que naufragaria e só depois chegaria, como prisioneiro, em Roma. Nada disso estava nos planos. O único direcionamento que Paulo tinha era de que ele deveria pregar o evangelho aos gentios, o que ele fez em cada momento.
Assim, devemos ter firmes a primeira frase de Sophie Muller, sim, de que não necessitamos de um chamado extraordinário de Deus para nos dispormos ao campo missionário. Por outro lado, não devemos nos esquecer que Deus pode nos dar, sim, um direcionamento específico, que nada mais é que um amor especial, uma santa ambição, uma sensação de dever especial – quando o seu coração pulsa ao ver um indígena, ou quando seus olhos marejam ao ver um árabe que ainda não conhece a Cristo, ou um pobre morador de rua lançado numa calçada – e isso não é coisa de sua cabeça, é o ministério ao qual Deus o está enviando, para o qual você deve deixar todas as coisas de lado para servi-lo.