Algumas coisas deveriam ser óbvias. A maneira como nos divertimos, por exemplo. Especialmente para um cristão, deveria ser óbvio que se divertir à custa de violência e imoralidade não é aprovado por Deus. No entanto, a violência e a imoralidade são os dois temas fundamentais do nosso entretenimento. Esses temas primeiramente entraram em nossas vidas pela ficção. Não haveria blockbuster sem um mínimo de violência e imoralidade. Logo nos acostumamos com ele.
Em seguida, o entretenimento por meio da violência e da imoralidade ganhou o ingrediente da interatividade, invadindo o universo dos vídeo games. No entanto, nestes dois casos, a violência e a imoralidade eram apenas temas secundários, que promoviam a narrativa principal. Atualmente chegamos ao ponto em que o entretenimento violento e imoral alcançou o nível do realismo, e ganhou o centro temático através de esportes como o UFC, e programas como o Big Brother Brasil.
A imoralidade sexual e a violência são os pecados sociais mais primitivos da humanidade. Você dificilmente encontrará nas culturas do planeta uma em que não haja problemas com a violência e a promiscuidade. Esse problema comunitário é encontrado nos primórdios da humanidade, quando um irmão assassina o outro (Gn.4.1-8), e é agravado quando toda a humanidade está marcada pela violência (Gn.6.1-11).
A violência é uma quebra deliberada do mandato pactual da fraternidade, assim como a imoralidade sexual é também este retrato distorcido da graciosa sexualidade humana. Esse é o óbvio. Mas a cultura da iniquidade tem justamente este propósito, tirar nossas certezas, ao tornar algo tão claramente ímpio como o divertimento sobre dois homens se machucando mutuamente, e chamar isso de esporte nacional.
E a cultura faz isso de uma maneira muito persuasiva, incitando o homem iníquo dentro de nós, com sede de poder sobre seu irmão (violência) e sobre o sexo oposto (imoralidade). É por isso que nós tanto precisamos, somos sedentos pela Palavra de Deus, pois ela é que nos confronta nesta inércia diante dessa cultura perversa. Agora, em meio a inúmeros textos bíblicos que nos mostram que Deus abomina a violência, observe que a Palavra de Deus aconselha
– A sequer desejar a violência, seja para si, seja para outra pessoa: “Do fruto de sua boca o homem desfruta coisas boas, mas o que os infiéis desejam é violência” (Pv.13.2);
– A não se alimentar da violência, ou seja, não andar, admirar, assistir a qualquer ato violento: “Não siga pela vereda dos ímpios (…) Pois eles se alimentam de maldade, e se embriagam de violência” (Pv.4.14-17);
– A não falar sobre violência: “A boca dos ímpios abriga a violência” (Pv.10.6);
– Novamente, não admirar os caminhos do homem violento: “Não tenha inveja dos ímpios, nem deseje a companhia deles pois destruição é o que planejam no coração, e só falam de violência” (Pv.42.1-2) “Não tenha inveja de quem é violento nem adote nenhum dos seus procedimentos” (Pv.3.31). Este homem violento não é apenas aqueles homens que se quebram no octógono, mas todos os patrocinadores, os empresários que vivem da violência alheia;
– O justo, por sua vez, evita o mal: “Pela palavra dos teus lábios eu evitei os caminhos do violento” (Sl.17.4).
Por estes versículos nós percebemos o quanto são amplos os conselhos dados aos justos no que diz respeito à sabedoria e à violência. O justo não vê, não apóia, não admira, não promove nem homens violentos nem homens e organizações que promovem a violência alheia.
Mas se, mesmo assim, a Escritura não fosse capaz de nos convencer através de ordens negativas, só uma mente muito cauterizada faria com que esportes como o UFC e programas como o BBB passassem pelo critério de Fp. 4.8: “Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas” (Fp.4.8).
Agostinho e os gladiadores: uma luz nas trevas.
É possível, no entanto, que pensemos estar lutando contra uma força muito grande, como é a força da opinião pública.
Nós muitas vezes somos levados a crer que a cultura nacional é soberana, e só porque há quase total hegemonia sobre algo, deve estar certo. Mas um bom antídoto contra este pensamento é olharmos para a história. Vermos que cristãos em épocas distintas também viveram dramas semelhantes.
Agostinho foi um destes. Agostinho de Hipona foi um teólogo e filósofo do século IV, e um dos principais teólogos do Ocidente de todos os tempos. Suas obras foram influência para homens como Martinho Lutero e João Calvino, por exemplo.
Uma de suas obras mais conhecidas se chama Confissões, em que ele relata a história da própria vida e de sua conversão em forma de uma longa oração. Acaba que a obra se torna também uma testemunha de seu tempo. Em determinado capítulo, quando ele ainda sequer havia passado pela conversão, mas fora educado na fé, ele descreve como o seu amigo Alípio, sob a forte influência de seus amigos, é levado a gostar dos espetáculos dos gladiadores, e também nos mostra as observações de Agostinho sobre este espetáculo:
“Não desejando de modo algum abandonar a vida deste mundo a que o estimulavam seus pais, tinha [seu amigo Alípio] me precedido em Roma para estudar Direito e lá foi vítima, em condições inacreditáveis, de uma paixão igualmente inacreditável pelos espetáculos de gladiadores. No início odiava esses espetáculos. Mas alguns amigos, companheiros de estudo, que voltavam de um jantar, encontraram-no por acaso na rua. Tentou resistir energicamente, mas seus amigos o impeliram com uma violência amistosa e o levaram ao anfiteatro, onde nesse dia, ocorriam esses jogos cruéis e funestos. Ele lhes dizia: “meu corpo, vocês podem arrastar e instalá-lo nas arquibancadas, mas poderão fixar meus olhos e meu espírito, pela força, nesses espetáculos? Estarei como que ausente e triunfarei sobre vocês e sobre eles”. Essas palavras não impediram seus amigos de levá-lo. Queriam ver se conseguiria fazer o que dizia. Chegaram, sentaram-se como puderam, todo o anfiteatro ardia com as mais selvagens paixões. Alípio, fechando seus olhos, proibiu seu espírito de participar dessas atrocidades. Pena que não tenha também abafado seus ouvidos. Pois aturdido pelo grito tonitruante de toda a multidão após a queda de um dos gladiadores, foi vencido pela curiosidade e, como se estivesse preparado para suportar e desprezar o que fosse que estivesse acontecendo, abriu seus olhos e recebeu em sua alma uma ferida mais severa do que o gladiador recebera em seu corpo, e caiu mais miseravelmente que o homem cuja queda suscitara o grito. Pois quando viu o sangue, imediatamente sorveu a selvageria e não virou o rosto, mas fixou-se na imagem que via e absorveu a loucura e perdeu seu senso crítico e deleitou-se com a luta criminosa e embebedou-se num funesto prazer. Não era mais o homem que tinha ido ao espetáculo, mas um membro da multidão, um verdadeiro companheiro daqueles que o haviam trazido. Em suma, acompanhou o espetáculo, gritou, ferveu de emoção e saiu de tal modo insano que estava pronto, não apenas para acompanhar de novo os que o haviam trazido, mas para convencer outros a ir. Mas Vós (Deus) o arrancaste deste caminho com a vossa mão tão forte e misericordiosa, ensinando-lhe que devia colocar toda a confiança em Vós e não em si. Mas isso foi só muito tempo depois”
(Confissões, VI, 8 – grifo nosso).
Agostinho nos conta como seu amigo foi convencido a ir ao espetáculo dos gladiadores e lá “absorveu a loucura e perdeu seu senso crítico e deleitou-se com a luta criminosa e embebedou-se num funesto prazer”, se tornando, assim, só mais “um membro da multidão”. Ao final, ele comemora o fato de Deus tê-lo tirado do gosto por este entretenimento tão iníquo.
Hoje em dia parece ser senso comum que as lutas dos gladiadores eram exploração e algo maligno, para entreter as massas. O futuro julga este nosso passado como algo mal, e não entendemos como as pessoas poderiam estar tão cegas a ponto de não enxergarem aquilo. No entanto, temos um registro de um homem que sequer era um cristão ainda, mas que tendo sido educado na fé, foi uma luz na escuridão de sua geração.
Certamente, lutar contra o entretenimento cada vez mais sofisticado, persuasivo e hegemônico de nossa geração mergulhada na cultura da iniquidade não será nada fácil, mas não é de outra maneira que a luz resplandece nas trevas, e que o testemunho ultrapassa gerações.