“Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus.” (1Co 10.31)
Se você for como eu, você se sentirá muito mais à vontade em dizer que está fazendo algo para a glória de Deus enquanto distribui folhetos evangelísticos em frente da igreja, ou enquanto sua alma está tomada de paixão em um momento de louvor na congregação, ou mesmo quando serve alimento aos desfavorecidos naquela atividade no final de semana com os jovens da igreja. Mas ficará mais inseguro em listar entre suas atividades cristãs aquele momento em que está lavando aquela panela de pressão cheia de carne engordurada, ou batendo a caneta bic na sua mesa, no escritório, em um não tão rápido momento de distração.
Textos como ESSE do John Piper, e livros como ESSE do Michael Horton estão me fazendo reavaliar de forma muito positivo a maneira como busco viver para agradar a Deus.
John Piper, de um lado, mostra que pecamos quando fazemos qualquer coisa que não seja para a glória de Deus. Assim, os incrédulos, até em suas melhores ações, pecam por não o fazerem com o objetivo de glorificar o nome de Deus. Já os regenerados pelo Espírito Santo, até em suas atividades mais triviais como beber um suco de laranja, estão glorificando a Deus quando o fazem com ações de graças.
Já Michael Horton faz uma acusação muito importante com respeito aos frutos da segunda geração de reavivamentos nos EUA, mostrando que esses avivamentos geraram uma idolatria de celebridades no país e uma constante e insaciável expectativa pela “próxima grande coisa”. Em consequência disso, a igreja voltou-se para uma busca desenfreada por grandes momentos e grandes experiências, afinal a “vida cristã comum” não era mais suficiente para atender às demandas por significado na vida. Assim, o autor segue em defesa dessa “vida cristã comum”, mostrando que ela é diferente de uma vida medíocre, ou de uma vida perfeccionista. A vida cristã comum busca a excelência em tudo o que faz.
Como grávidas que passam a enxergar coisas de bebês em todo lugar, passei a ver como a Palavra de Deus aplica abundantemente a vida cristã a aspectos da vida que consideramos triviais. Tenho sido enriquecido diariamente ao lembrar-me dessas verdades. Paulo, por exemplo, quando fala que os crentes devem viver de maneira digna do evangelho (Ef 4.1), que devem ser imitadores de Deus (Ef.5.1), ele aplica falando de coisas triviais como as relações pessoais (Ef.4.2-3) relações familiares (Ef.5.22-6.4), e relações no trabalho (Ef.6.5-9). O apóstolo Pedro, por sua vez, relaciona o marido viver “a vida comum do lar” (1Pe 3.7) à vida de “estrangeiros e peregrinos no mundo” (1Pe.2.11).
Na Palavra de Deus, a expressão “comer e beber” em muitos casos funciona como metonímia da vida cotidiana. Afinal, há algo mais cotidiano que “comer e beber”? A partir do uso dessa expressão naqueles casos que assim se relacionam à vida cotidiana, apresento a seguir algumas lições sobre como mergulhar na trivialidade da vida de um modo que glorifique e agrade a Deus, como concidadãos dos céus, peregrinos e estrangeiros, imitadores de Deus.
1) Pagar as contas confiando no amor e na vontade de Deus (Mt.6.31).
“Não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer? ’ ou ‘que vamos beber? ’ ou ‘que vamos vestir?’” (Mt.6.31)
Esse é um dos textos mais conhecidos que usaremos aqui. Está lá, no Sermão do Monte. Jesus está contrapondo a vida cristã à vida dos pagãos: “Os pagãos é que correm atrás dessas coisas” (6.32). Ele conclui essa parte com um dos versículos mais usados exatamente na defesa de uma vida “incomum”: “Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça” (6.33). Defendemos, no entanto, que buscar o Reino de Deus e sua justiça é justamente viver uma vida de obediência em todas as coisas, inclusive nas mais triviais. Nisso, ele ordena “Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber” (6.25). Jesus nos fala de uma vida cristã sem preocupações com as coisas triviais. A base para essa confiança não está em que Deus irá suprir de todas as coisas que necessitamos, mas sim de que Deus nos ama mais do que as aves do céu (6.27) e do que os lírios do campo (6.30), e que ele sabe do que realmente precisamos (6.32).
Quando você toma o sol do horário do almoço para enfrentar a fila do banco para pagar a conta da internet, você precisa se lembrar que Deus o ama e que sabe do que realmente precisa. Você pode andar confiante que, mesmo se não restar muita coisa na conta, mesmo se um assaltante surgir no banco e roubar todo o seu dinheiro, e mesmo se, atrevidamente, atirar em uma de suas pernas de tal modo que o torne inválido para pagar a conta no mês seguinte, nem mesmo nessa circunstância trágica e inesperada você não deve se preocupar, pois nada nos separá do amor de Deus (Rm.8.35) e ele sabe do que precisamos.
2) Assistir a séries no Netflix no temor do Senhor (Lc.17.27-28)
“O povo vivia comendo, bebendo, casando-se e sendo dado em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. Então veio o dilúvio e os destruiu a todos. Aconteceu a mesma coisa nos dias de Ló. O povo estava comendo e bebendo, comprando e vendendo, plantando e construindo” (Lc. 17.27-28).
Viver uma vida cristã comum não significa viver uma vida de mediocridade, vivendo a trivialidade da vida de modo insensato, como se não tivéssemos a quem prestar contas. Esse é o modo com os homens perversos nos tempos terríveis de Noé e de Ló viviam.
Veja que nesse texto em que Jesus ensina sobre o modo repentino como virá para julgar vivos e mortos, ele lembra que, tanto nos dias de Noé quanto nos dias de Ló, períodos de juízo iminente de Deus, os homens viviam suas vidas de forma insensata, despreocupada. Veja que ele descreve as trivialidades da vida como comer, beber, casar-se, negociar. Nada disso é pecado em si, mas os homens perversos viviam essa vida sem o temor do Senhor, de forma insensata. Viviam a vida cotidiana como se só existisse essa vida, e não houvesse ninguém que irá julgar os nossos atos.
Quando você assiste a séries do Netflix, borboleteia as redes sociais, envolve-se nas conversas de café no trabalho, quando decide fazer ou não fazer alguma coisa, quando você investe tempo em algumas coisas e relega outras, você precisa se lembrar de que prestará contas de todas essas coisas. O Senhor nos lembra constantemente de que devemos andar vigilantes, despertos do sono como se a vida comum não significasse nada. Você precisa colocar um post-it no seu cotidiano lembrando-o de que vive debaixo da presença de Deus – isso é uma vida no temor do Senhor. Diz o apóstolo Paulo em Ef.5.15-16: “Tenham cuidado com a maneira como vocês vivem; que não seja como insensatos, mas como sábios, aproveitando ao máximo cada oportunidade, porque os dias são maus”. O apóstolo Pedro também estava preocupado com o modo como gastamos o nosso tempo: “No tempo que lhe resta, não viva mais para satisfazer os maus desejos humanos, mas sim para fazer a vontade de Deus.” (1Pe.4.2).
Tudo em nossa rotina, as tarefas na agenda, as decisões que tomamos, tudo deve ser feito de olhos abertos, conscientes da sondagem do Senhor em nossas motivações e de seu olhar em nossas obras, e que Ele pode chegar a qualquer momento, quando não houver mais tempo de buscar o seu favor.
3) Acordar segunda-feira com esperança na ressurreição (1Co.15.32)
“Se os mortos não ressuscitam, ‘comamos e bebamos, porque amanhã morreremos'” (1Co.15.32).
Nesse texto, o apóstolo Paulo está argumentando em favor da ressurreição dos mortos, seja em favor da ressurreição de Cristo quanto de nossa ressurreição também. Ele já mostrou que sem a ressurreição de Cristo é vã a nossa fé. Agora, ele diz que sem a ressurreição dos mortos é vã a nossa vida, ou pelo menos uma vida dedicada a Deus, que requer abdicar dos prazeres pecaminosos deste mundo, de sofrer pela justiça do Reino de Deus, e de viver uma vida cotidiana que agrada a Deus.
Paulo mostra que o chão que faz você pisar firme nos dias maus, nos dias de sofrimento e de perseverança é a esperança de que esta vida, embora já seja o início da vida eterna, é apenas um estado de prova. Estamos apenas em peregrinação para aquele Novos Céus e Nova Terra, para aquele corpo espiritual, sem pecado, sem sofrimento, sem lágrimas. Sem essa esperança, a vida cotidiana é apenas a vida cotidiana, sem qualquer sentido. Somos apenas seres lançados no caos, sem um justo juiz sobre o mal, sem uma santa lei como guia, sem um Pai amoroso que cuida de nós. Sem essa esperança, portanto, devemos aproveitar ao máximo todos os prazeres e alegrias que essa vida nos dá, como se só isso nos restasse. Se não há um pai que cuida de nós, nós mesmos é que devemos lutar por nossas coisas, mesmo que custe a vida do próximo. Se não há um Deus que julga as causas humanas, não há lei, apenas o arbítrio do desejo e da vontade pecaminosa: “comamos e bebamos”, vamos viver como se só existisse essa vida e como se não houvesse Deus.
Por outro lado, se há ressurreição, em cada agrura cotidiana você pode depositar esperança na herança que o Senhor está guardando para seu povo. Em cada manhã que você acorda debaixo deste sol amaldiçoado pelo pecado, enfrentando a vida crua e dolorosa, abdicando dos pequenos prazeres que o tornarão distraído da verdadeira vida, você se levanta confiante de que, se o Senhor voltar nesse dia, você gozará plenamente da eternidade com Deus, com todo esse mal arrancado de uma vez por todas.
4) Alegrar-se na planilha do Excel (Ec.2.24)
“Para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho. E vi que isso também vem da mão de Deus.” (Ec 2.24)
Já vimos que a vida comum cristã é aquela que caminha confiante no amor e na vontade de Deus, que mede o tempo e as decisões debaixo dos olhos do justo juiz, e que sofre os danos da vida com esperança na ressurreição.
Ao mesmo tempo que você confia no amor paterno de Deus, também sabe que Ele é justo juiz. Ao mesmo tempo que a esperança na ressurreição leva você a desmamar dos prazeres pecaminosos deste mundo, agora o pregador de Eclesiastes vai encorajá-lo a aproveitar as boas dádivas que o Senhor concede a cada dia.
O pregador de Eclesiastes sabe que o mundo é mau, mas a sua proposta não é a dos libertinos acusados por Paulo (“comamos e bebamos”), e sim que, ao levar uma vida sábia, no temor do Senhor, Deus recompensa você no cotidiano, com dádivas boas e comuns da vida. Daí que, ao invés de levar uma vida de murmuração, você é convidado a contemplar as coisas boas da vida neste mundo mau e a alegrar-se nelas, pois foi Deus que as deu.
Naquele tempero especial no almoço feito pela esposa, naquela cama macia quando você descansa, no cheio da roupa nova, no carinho amoroso dos filhos, nos momentos descontraídos com os amigos. E no trabalho. Mesmo diante de um mundo amaldiçoado pelo pecado, um mundo de dor e de cansaço, o livro de Eclesiastes o convida a encontrar prazer no trabalho, naquilo que Deus o capacitou para fazer. Ele o convida a encontrar realização quando você desenvolve as habilidades que Deus deu a você para fazer o bem.
O pregador está falando a mesma coisa que o apóstolo. Ele está desenraizado você daquela ambição desequilibrada que o faz desejar ganhar o mundo em troca de sua alma. Ele o faz olhar para as coisas cotidianas, e lembra que essas coisas vem de Deus. É o que Paulo ensina a Timóteo: “Tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado, se for recebido com ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus e pela oração” (1Tm.4.4-5).
Quando um cristão regenerado pelo Espírito Santo está diante do pão reconhecendo que a mesa posta para alimentar sua família naquele dia é presente de Deus (Ec.3.13), então ele está vivendo a vida cristã comum de um modo que glorifica mais a Deus que a daquele ministro cheio de entusiamo pelos aplausos humanos.
5) Lavar a louça para a glória de Deus (1Co.10.31)
“Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus” (1Co.10.31)
Esse último item é muito importante. Ele nos livra do legalismo, de dizer o que devemos fazer ou deixar de fazer na vida cristã para a glória de Deus. Isso porque ele fala que a nossa motivação é mais importante.
Veja, é muito bom ver um homem lavando a louça de sua esposa após o almoço. Um bom marido crente faz isso. Mas, para a vida cristã, faz toda a diferença se ele faz isso para Deus ser glorificado ou esperando a repercussão entre quatro paredes à noite. Um marido que lava a louça tendo como motivação que a esposa responderá com sexo à noite é o mesmo que não levará a família para a igreja pelo mesmo motivo. A motivação é importante. O jovem que faz um bom trabalho esperando sua promoção, poderá fazer algo que desagrada a Deus pelo mesmo motivo. Um pai que compra um presente como troca do amor do filho pode deixar de discipliná-lo pelo mesmo motivo. Um pastor que se dedica na preparação de um sermão para receber elogios pode deixar de repreender uma ovelha pelos seus pecados com a mesma motivação. A motivação é importante.
O apóstolo Paulo está respondendo se é permitido comer alimentos sacrificadas a ídolos, e ele responde que sim, pois se algo bom é recebido com ações de graças não é condenável. No entanto, ele também responde que não, se com isso agredir a consciência de alguém. Veja que ele está dizendo que a motivação é importante quando você tiver de fazer algo bom. Não basta fazer uma lista de regras e de coisas que agradam a Deus. Muitos ímpios, incrédulos e hipócritas fazem coisas boas muitas vezes melhor do que nós. Você deve fazer para a glória de Deus, com amor a Deus e ao próximo. Eu posso comer alimentos sacrificados a ídolos pois isso não fere o meu amor a Deus, mas eu não posso comê-los se com isso eu ferir meu amor aos fracos na fé. Em cada coisa que fizer, lavando louça, levando os filhos para passear, planejando pedir a moça em namoro, em tudo devo buscar a glória de Deus, fazendo com ações de graças e amor ao próximo.
Gostaria de finalizar com uma advertência semelhante à que o Michael Horton fez em seu LIVRO. A vida cristã comum não quer dizer uma vida cristã medíocre. Não quer dizer não se preocupar com a evangelização, não se preocupar com o crescimento da igreja, não se preocupar com uma adoração excelente. Muito pelo contrário. Viver a vida cristã comum equilibra nossas motivações e nossas expectativas com aquele desejo ardente de viver a vida para a qual o Senhor nos chamou. Por exemplo, um missionário que deixa a “vida comum” para ir para o estrangeiro se embrenhar nas florestas da Indonésia em uma tribo isolada deverá compreender que lá ele não será o Indiana Jones, lá também vai ter louça pra lavar. Lá também ele verá o fruto do seu trabalho a partir de práticas cotidianas que não vão nutrir suas anedotas missionárias para contar às igrejas. Do mesmo modo, o jovem pastor que prega com o mesmo movimento de braços empolgante do John Piper poderá ver mesmo assim o adolescente sonolento se remexendo no banco, e quando terminar, não haverá nenhum comentário motivador. Mesmo assim, tanto o missionário quanto o pastor encontrarão deleite em tudo o que fizeram, pois a motivação de tudo o que fizeram estava na glória de Deus.
Ao mesmo tempo, esses trabalhos que são considerados por alguns como grandiosos, são trabalhos que podem ou não glorificar a Deus. Eles vão glorificar a Deus se a vida cristã for encarada com confiança, temor do Senhor, esperança, alegria e para a glória de Deus, mesmo nas menores coisas. Mas, se for diferente, mesmo o pastor mais eloquente terá recebido sua recompensa apenas de aplausos humanos, se for essa a sua motivação. Se for assim, Deus é que estará sonolento, se remexendo no banco, entendiado com nossas ambições tão enraizadas neste mundo pecaminoso.
Confira o livro do Michael Horton, que também trata do assunto: