002 – Uma vida inteira

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Eles nasceram, estudaram e se casaram, tendo dois meninos: ela era fonoaudióloga; ele torcia pelo Santos; ela assistia a novelas; ele era advogado. Às vezes, saíam: um restaurante, uma lanchonete, ou pediam um lanche e assistiam a um filme em casa. Sábado: dormiam e assistiam televisão. Domingo: casa dos pais da mulher e Fórmula 1. Um dia foram à igreja: ela atendendo a um convite da amiga; ele era braços cruzados e um bico desse tamanho.

A Palavra, porém, mesmo naqueles rituais de igreja e de crente que não entendiam e causava embaraço, atingia suas poucas e frágeis convicções. Como um simpático e estranho homem que, vendo os cãezinhos abandonados, de longe, abaixa-se e chama a atenção deles. Assobia e estende as mãos com o anelar fazendo cócegas no polegar. Os cães, sujos, cheios de feridas, estão desconfiados do homem, e embora virassem as costas e fingissem desatenção, a cada passo do distanciamento, os focinhos acenavam como pedindo paciência e misericórdia.

Após o culto, chegaram a casa com os rabos entre as pernas (escondendo ao máximo o cheiro do medo). Ela, calada; ele já havia falado mal até do penteado da esposa do pastor; ela, com o silêncio do constrangimento, às vezes, fingia a concordância das mulheres forjando uma cumplicidade de casal; ele, um cachorrinho que foge do banho escondido na lama, suas palavras más eram o último deleite de desespero do maligno em seu coração.

A segunda-feira não foi comum: os olhos, abertos. Após o trabalho, mal se falaram. O telefone em casa tocou; ninguém nunca soube quem foi: a linha caiu quando ele atendeu, junto com toda a sua resistência. Chorou amargamente ao lado da mesa do telefone; a esposa se juntou com a companhia das lágrimas. A intensidade da dor de ambos naquele momento era o contraste do Cristo celestial e humano comparados a si mesmos. Oraram sem saber muito bem como é que se fazia; era a primeira vez que faziam algo juntos tão intensamente desde a lua-de-mel. Os cachorrinhos estavam agora prontos para receberem os carinhos de seu novo dono, e o casal tomou nova rotina na vida.

A nova rotina

Não perdiam qualquer atividade na igreja; no trabalho, notava-se a diferença, no aspecto, no trato, nas negociações diárias; no lar, oravam e meditavam sobre textos da Bíblia; ao dormir, contavam as histórias bíblicas para as crianças, cantavam e oravam juntos em família. Cada decisão que tomavam, colocavam em reflexo a Palavra de Deus. Certa vez, no entanto, quando ele a deixaria no trabalho, pararam em um semáforo, sendo abordados por um menino pedinte:

– Não temos nada a oferecer! – responderam.

Eles sabiam que não era verdade. Naquele dia, assim, eles começavam a compreender que a indiferença quanto ao restante das pessoas era um canal onde eles assistiam o mundo passar: outra vez estavam na vergonha da nudez diante de Deus. Os olhos abertos não oferecem a visão geral e definitiva, mas a possibilidade de ampliar o ver a cada novo olhar, que trazendo vergonha do antigo estado, pode brotar coragem ou a vontade de colocar óculos escuro.

Chegaram a casa e cada um se escondia como podia entre televisão, internet, e na devocional noturna; o quarto do sono, incômodo. No outro dia, ele arriscou dar uma moeda ao rapaz; ainda no outro, ousou levar roupas e uma marmita, mas quando chegavam a casa, sentiam no descanso e no luxo a miséria de todos os outros. Um fato se dava na vida deles: se antes se envergonhavam com a própria maldade, acumulavam agora o constrangimento pela maldade das pessoas, e como não enxergavam modos de agir, passava rasteiro a vontade de culpar a Deus, e a revolta extrema. No sábado, um menino bateu a porta pedindo dinheiro, e como era jovem, ele disse ao menino que daria se o menino cortasse sua grama: numa tarde o quintal estava limpo e a grama aparada. Ele o pagou perguntando por que não trabalhava, já que era jovem e saudável:

– Mas eu trabalho, sim. Num escritório no centro. Este dinheiro é para o orfanato da cidade. Todo sábado o pessoal da minha paróquia sai arrecadando dinheiro para este orfanato.

Às vezes Deus sussurra, e às vezes Deus grita.

O orfanato

Era um orfanato de meninas, e já no final do ano ela, após dois meses de ensaio, apresentou-se no shopping com as meninas do orfanato, formando um belíssimo coral de natal; ele também ajudava com as coisas jurídicas, e mesmo na administração do orfanato. As pessoas da igreja que o casal frequentava envolveram-se também no trabalho; o casal empenhou-se de tal forma na vida daquelas meninas que suas demais ocupações repartiam sua vida. Cansados de viver a vida pela metade, largaram ambos suas ocupações, sendo contratados pelo orfanato para desempenharem tarefas específicas.

As finanças da casa sofreram enorme queda, deixaram de ir a restaurantes, de pedir tantas comidas, os meninos precisaram sair da escola particular. A crise financeira trouxe àquela casa ansiedade, pequenos desentendimentos, certa frustração. Sempre que a tristeza levantava-se com o sol, a esposa fazia pipoca, e explicava:

– Pra fazer a pipoca, pego os caroços de milho, estão duros, amarelos. Eles precisam passar por enorme temperatura, por enorme tensão, para sair de dentro deles uma força muito maior que eles mesmos, uma força branca, formosa e macia.

A pipoca salgava a insípida dor, que se punha com o sol. Em pouco tempo reestruturaram as finanças, voltaram a sair mais, e os meninos conseguiram uma escola particular mais barata.

Certa vez, enquanto liam a Bíblia com as meninas do orfanato em frente a eles, ela e ele usavam uma única Bíblia, e neste momento perceberam pela primeira vez que olhavam na mesma direção.

Viagem ao nordeste

O primeiro pastor do casal estava indo embora ao Nordeste, numa pequena cidade. Manteve-se, porém, em contato com o casal, que ficou muito comovido com seus relatos sobre a pobreza e as dificuldades do local. Logo, o pastor conseguiu um emprego para ela na cidade, dando aula, e a família fez as malas ao Nordeste, deixando o orfanato com pessoas de confiança. Ele trabalhou pela prefeitura, e viveram ali naquela cidadezinha pobre por muito tempo. Junto com o pastor, fundaram duas igrejas, criaram uma escola e muitas pessoas conheceram o evangelho pela primeira vez pela vida daquele casal.

Aconteceu que ela, fragilizada com o clima da região, adoeceu, tanto que, engravidando de sua primeira menina, o casal não pôde ver a barriga crescer até o nono mês… Toda a cidade ficou comovida com a fatalidade. Desta vez, ele quem fez a pipoca, tendo o cuidado de retirar todas as sementes que não brotaram antes de oferecer à esposa.

O tempo no nordeste serviu para o amadurecimento do casal, estavam sadios na Palavra e experientes na vida cristã: participavam de congressos com missionários e faziam amizade com toda gente séria servindo o Reino de Deus. Por essas amizades e por uma reportagem que viram na televisão a respeito da guerra civil em Angola, o casal sentiu muita dor pelo povo, e as pipocas do coração fizeram a família tomar a decisão de ajudar um casal de amigos missionários que estavam lá.

A vida em Angola

Oraram e conseguiram o emprego que precisavam para partir. Em Angola, ele envolveu-se com as leis do país e com a política, brigando pelo povo de onde morava, e isso causou certa perseguição à família, que por muitas vezes quase tiveram de voltar ao Brasil; ela, além de lecionar na Universidade, ajudou a fundar um pequeno hospital numa vila, pois fizera um curso de enfermagem no nordeste. Além disso, auxiliaram com muita fidelidade o casal de amigos na evangelização das vilas e cidades. Fundaram congregações que se tornaram igrejas, escolas que vieram a ser também universidades, e pequenos postos de saúde, treinando enfermeiros locais. Ele auxiliou na tradução de trechos da Bíblia para alguns idiomas nativos, e ela organizou corais (tendo escrito muitos cânticos para a igreja), as sociedades femininas, infantis e auxiliava na Escola Bíblica.

Os dois meninos do casal cresceram também muito comprometidos com a Palavra. O mais velho deixou a família para se casar e estudar medicina na África do Sul, onde tinha o desejo de cuidar do problema da AIDS no continente. O mais novo, apaixonado que estava por aviões desde que viajaram ao nordeste, tornou-se piloto de transporte de missionários nas selvas da América Latina.

Um dia, porém, souberam de um amigo que havia tido a entrada na China barrada, pois nesse país perseguiam cristãos, e ele não poderia entrar como missionário. O casal sentiu-se desafiado. Porém, já estavam com as forças ganhas. Chegaram a casa, ambos já com suas idades nos olhos: ela mostrou-se bastante interessada em ir ao país; ele, preocupado com a saúde dela. Naquela noite, oraram como nas primeiras vezes, muito compadecidos pelo povo da China e se colocando à disposição para o trabalho. O sono foi o mais profundo e o mais celestial.

A nova manhã

A manhã tornava-se a mais bela a cada piscar de olhos. O casal acordou e tomou o café da manhã juntos; não sabiam a hora, pois estranhamente todos os relógios da casa haviam sumido. Na viração do dia, tocou a campainha. Quando ele foi atender, permitiu-se a alegria que pula que a idade lhe permitia. Foi receber na porta o próprio Cristo Jesus, que estava passeando por ali. Abraçaram-se como amigos muito chegados que sempre se falavam, mas custavam de se ver. Cristo Jesus olhou para o casal dizendo:

– Eu sempre soube onde encontrar vocês!

Junto a Jesus estavam Pedro, Paulo, Abraão, Moisés, Maria e Ana. Foram recepcionados com a alegria da criança recebendo o presente de natal. O casal orgulhava-se de recebê-los em casa. Ela foi logo levando Ana e Maria para conhecerem os cômodos. Abraão e Moisés pediram uma rede que pudessem descansar. Pedro foi para a cozinha, trazia um peixe típico de Angola, que havia pescado, e ele mesmo fazia questão de preparar.

– Não temos muito a oferecer… – ela ficou um pouco constrangida, pois ainda não tinha feito compras.

– Eu estou muito satisfeito, obrigado – agradeceu o Rei Jesus.

Todos estavam à vontade na casa. O Senhor Jesus e Paulo ficaram na cozinha, onde o marido contava várias coisas, empolgado, das meninas do orfanato, do povo do nordeste e de Angola. Vez ou outra, o apóstolo dos gentios interrompia e dizia:

– Ah! Eu me lembro disso. No final você foi lá e resolveu a questão, não foi?

Mais à tarde, todos se reuniram na sala para os cânticos de louvor; Ana, Maria e Moisés cantavam muito bem; Pedro deixava a desejar; o marido tocava o violão e a esposa, um tambor típico de Angola. Em certo momento, no entanto, entre uma música e outra, ela ousou perguntar a Cristo Jesus:

– Ontem eu e meu marido entregamos a decisão de irmos ou não para China ao Senhor, pois aquele povo tem sofrido e precisa conhecer a tua Palavra. Gostaríamos de saber a resposta.

Nosso Senhor abaixou levemente a cabeça, escondendo um sorriso contido de orgulho. Os demais celestiais ficaram se olhando com os risos de quem prepara uma festa surpresa, e o segredo só quem não sabia eram ele e ela.

O casal foi enterrado na África, mas suas vidas por muito tempo ainda se mantiveram no coração de pessoas do mundo todo, uma vida inteira a ser lembrada, como uma canção tão linda que continua a soar mesmo depois que os instrumentos se calam. O amigo do casal finalmente conseguiu entrar na China, onde levou secretamente a Palavra de Deus para muitas vidas.

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