A tradução da Bíblia de Lutero

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A tradução da Bíblia para a língua alemã, feita pelo reformador Martinho Lutero, levou a reforma religiosa do século XVI a um nível mais profundo, legando a Palavra de Deus aos simples camponeses

A tradução da Bíblia de Martinho Lutero foi a mais influente tradução da Reforma Protestante, foi uma das mais primorosas obras literárias produzidas em língua alemã, foi um fenômeno editorial, mas também foi odiada por muitos.

Conheça um pouco mais dessa tradução que foi o principal legado do reformador alemão.

Martinho Lutero e a Bíblia

Martinho Lutero foi um monge agostiniano alemão que, em 31 de outubro de 1517, afixou nas portas da igreja do castelo de Wittenberg 95 teses que questionavam doutrinas e práticas da igreja romana de seu tempo. A repercussão dessas teses deu origem ao movimento conhecido como Reforma Protestante.

Cena do filme “Lutero”, 2003

As divergências com o catolicismo romano diziam respeito especialmente ao comércio de indulgências que concedia perdão de pecados a quem pagasse por ele. No entanto, a polêmica cresceu e levou Lutero a negar abertamente a autoridade do Papa. Suas ideias culminaram em uma advertência do próprio Papa ao monge, através da bula “Exsurge Domine”,  publicada em 1520, exigindo retratação. Mas Lutero queimou em praça pública essa bula, enviando um documento ao Papa, onde estava escrito:

Eu não me submeto a leis ao interpretar a palavra de Deus“.

Assim, tendo sido excomungado pelo Papa, era hora de encarar o Imperador do Sacro Império Romano, Carlos V. Em abril de 1522, Lutero participou de uma assembléia na cidade de Worms convocada para que o monge tivesse mais uma oportunidade de se retratar, dessa vez na presença do Imperador.  Nessa assembleia, foi mais uma vez questionado por suas ideias. E outra vez, Martinho Lutero não se retratou, tendo dito:

“A não ser que eu esteja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara (pois não confio nem no papa ou em concílios por si sós, pois é bem sabido que eles frequentemente erraram e se contradisseram) sou obrigado pelas Escrituras que citei e minha consciência é prisioneira da palavra de Deus. Não posso e não irei renegar nada, pois não é nem seguro e nem correto agir contra a consciência”


O resultado é que Lutero foi condenado como um herege, sendo inclusive concedida uma recompensa para quem o entregasse. Por isso, após a assembleia em Worms, Lutero desapareceu, e ficou por algum tempo refugiado no castelo de Wartburg, protegido pelo príncipe-eleitor da Saxônia Frederico III. E foi nesse refúgio em Wartburg que Lutero iniciou a mais importante obra de sua vida – a tradução da Bíblia para o alemão.


Lutero na Dieta de Worms, em 1522

Mais do que qualquer outra coisa, foi o seu profundo relacionamento com a Bíblia que levou Lutero a enfrentar os maiores poderes do seu tempo. E esse relacionamento começou tarde.

Lutero diz não ter visto uma Bíblia até os 20 anos. Mas a sua descoberta da Palavra de Deus se aprofundou mesmo quando, por recomendação de seu “pai na fé” Johann Stauptiz, foi lecionar a disciplina de Bíblia na Universidade de Wittenberg, em 1508.

A partir de 1515, iniciou seus estudos no hebraico e no grego, para ler a Bíblia não apenas no latim da Vulgata. O grego ele aprendeu de Filipe Melanchton, seu fiel companheiro. Também nesse período, começou a lecionar os livros do Novo Testamento. São essas reflexões bíblicas que o levarão a escrever as teses e todas as suas obras, combatendo as heresias da igreja romana.

E foi nesse período que um sentimento profundo surgiu em seu coração:


Lutero tocando alaúde em momento informal

“Gostaria que a mulher mais simples pudesse ler os evangelhos e as epístolas do apóstolo Paulo. Gostaria que essas palavras fossem traduzidas para todas as línguas, a fim de que não só os escoceses e os irlandeses, mas também os turcos e os sarracenos pudessem lê-las. Desejo que o lavrador as cante para si mesmo enquanto trabalha com seu arado, e o viajante preencha com elas a monotonia de sua viagem.”

Uma Bíblia para o alemão comum

A tradução de Martinho Lutero não foi a primeira Bíblia em alemão. Entre 1466 e 1522, pelo menos 14 edições da Bíblia em alemão mais erudito, e 4 para o alemão mais popular circularam na região. Mas a de Lutero foi maior que todas elas.


Quarto de Lutero, no castelo de Wartburg

Muitos chegam a defender que essa tradução foi responsável por modernizar a língua alemã, e certamente sua tradução contribuiu para unificar a nação alemã em torno do dialeto escolhido por Lutero. Seu trabalho foi tão bem sucedido que a sua versão é popular ainda nos dias de hoje.

Martinho Lutero iniciou seu trabalho de tradução no período que ficou refugiado no castelo de Wartburg, sob a proteção do príncipe-eleitor Frederico III, com o codinome de cavalheiro Jorge, em 1521. Neste seu refúgio, que ele chamou de “minha Patmos”, Lutero concluiu o primeiro rascunho do Novo Testamento em prodigiosos 11 meses!!!

Já a tradução do Antigo Testamento não foi tão simples. Ela durou longos 12 anos para ser concluída.

Uma das grandes inovações na tradução de Lutero foi não ter feito a tradução pelo latim da Vugata. Lutero traduziu o seu Novo Testamento a partir da 2a edição do Novo Testamento grego publicado pelo humanista Erasmo de Roterdã (hoje essa edição é conhecida como Textus Receptus). Já para o Antigo Testamento, Lutero se utilizou de vários manuscritos do texto hebraico, língua que ele tinha maior dificuldade.

Não foi um trabalho simples. Lutero tinha um especial desejo de ser compreendido pelo homem mais simples. Ele dizia:

“Traduzir adequadamente é exprimir o sentido de uma língua estrangeira em seu próprio idioma. Procuro traduzir como as pessoas falam no mercado. Ao traduzir Moisés, eu o torno tão alemão que ninguém suspeitaria que ele foi um judeu.”

“Qual a palavra? Qual a palavra?”

Ao traduzir, ele se perguntava: Como se diz isto em alemão? O leitor vai entender? Para isso, ele fazia visitas ao mercado e aos lugares onde estaria o homem simples. Diz-se que, enquanto traduzia o livro de Levíticos, visitou um açougue e pediu que o açougueiro lhe dissesse os nomes das partes de um cordeiro, a fim de que pudesse traduzir melhor os sacrifícios. Também, ao traduzir Apocalipse 21.18-21, pediu para ser levado ao palácio para verificar o nome das pedras preciosas que estavam cravadas na coroa.

Era assim que trabalhava:

“Não se deve perguntar às letras na língua latina como se deve falar em alemão, como fazem esses burros, e sim, é preciso perguntar à mãe em casa, às crianças na rua, ao popular na feira, ouvindo como falam, e traduzir do mesmo jeito, então vão entender e notarão que se está falando alemão com eles”

Para obter o resultado que desejava, Lutero não traduzia literalmente, seguindo a forma do grego, mas privilegiava o sentido. Para Lutero, o tradutor é um intérprete.

Seu preciosismo em buscar uma tradução na linguagem simples o levou a longas reflexões linguísticas:

“Mais de uma vez aconteceu que ficamos procurando e pesquisando uma única palavra durante duas, três ou quatro semanas, sem contudo encontrá-la por vezes”

Não foi à toa que ele chegou à seguinte conclusão:

“Se Deus quisesse que eu morresse pensando ser um sujeito inteligente, ele não me teria dado o trabalho de traduzir a Bíblia.”

Além do mais, Lutero compreendia que o trabalho de tradução não poderia ser solitário:

“Os tradutores nunca devem trabalhar sozinhos. Quando um tradutor está sozinho, as melhores e mais adequadas palavras nem sempre lhe ocorrem”

Por isso, ele submeteu suas traduções a uma equipe de estudiosos que ele chamava de “Sinédrio“. Essa equipe era formada por Filipe Melanchton, Justus Jonas (deão da faculdade de teologia de Wittenberg), Caspar Cruciger, Matthew Aurogallus (professor de hebraico de Wittenberg) entre outros.

Entre 1531 e 1544, essa equipe reuniu-se pelo menos cinco vezes para fazer revisões. Só para ter uma ideia, já a segunda edição continha 574 correções, entre falhas de impressão e de estilo.


“Sinédrio”, o comitê de tradução de Lutero

Melanchton e Justus Jonas também ficaram responsáveis pela tradução dos livros deuterocanônicos.

Mas, ao final, o esforço valeu a pena. Sua alegria chegou ao ponto de considerar a tradução da Bíblia sua principal obra:

“Gostaria que todos os meus livros fossem destruídos para que somente a Bíblia fosse lida com todo zelo e cuidado.”

Um fenômeno editorial

A Bíblia de Lutero se tornou um fenômeno editorial. Sua popularidade se deve, entre outros motivos, à recente invenção da prensa de tipos móveis, de Gutenberg. Recurso que os tradutores anteriores não dispuseram.


Páginas da primeira edição do Novo Testamento de Lutero

A primeira edição do Novo Testamento foi publicada em setembro de 1522, alguns meses depois que Lutero deixou a reclusão no castelo de Wartburg.  O tipógrafo dessa primeira edição foi Melchior Lotter, que fez uma edição ilustrada com xilogravuras de Hans Holbein, Lucas Cranach e outros. Lutero desejava que as ilustrações pudessem “chamar pequenos e grandes para ouvirem a voz do Bom Pastor”.

Os três mil exemplares da primeira edição acabaram tão rapidamente que uma segunda edição saiu logo em dezembro do mesmo ano.
Um dos diferenciais da edição também foi o preço. Uma Bíblia latina custava em média 360 florins. A edição de Lutero saiu por um florim e meio, que representava uma semana de trabalho de um camponês.


Prensa de tipos móveis de Gutenberg

Lutero não foi apenas um reformador religioso, mas a abrangência do seu pensamento influenciou a tipografia também. Para as edições seguintes de sua Bíblia, Lutero refletiu sua revolta com a influência romana na Alemanha através da tipografia. Ele insistia que sua obra fosse impressa nos tipos góticos SchwabacherFraktur, fazendo forte oposição aos tipos latinos. Ele dizia que “as letras latinas impedem-nos fortemente de falar bem alemão”. Chegou, inclusive, a cunhar a seguinte fórmula: “alemão = protestante = bom = tipo fraktur”, em contraste com a antifórmula: “latino = papista = mau = letra romana”.

A edição completa da Bíblia, incluindo os livros deuterocanônicos, saiu apenas em 1534. O impressor desta última edição foi Hans Lufft, o impressor de Wittenberg. Essa edição é considerada uma obra-prima literária e tipográfica do século 16. Ela vinha com glosas marginais, prefácios e ilustrações. Era, portanto, uma Bíblia comentada.

Enquanto Lutero esteve vivo, mais de 100 mil exemplares oficiais foram vendidos de sua Bíblia. Sua Bíblia foi o primeiro best seller mundial, tornando-se um fenômeno editorial em toda a Europa. Contando outras 253 edições, calcula-se que meio milhão de Bíblias e porções da Bíblia tenham circulado na Europa em 3 décadas.

O brasão de Lutero, para as edições autorizadas da Bíblia

Isso sem contar com a pirataria. Sim, Lutero precisou lidar com a pirataria, de editores que ele chamou de “sanguessugas gananciosos e reimpressores ladrões”. Para enfrentá-los, Lutero passou a imprimir em suas cópias autorizadas um brasão que ficou conhecido como a rosa de Lutero.

Mas a tradução de Lutero não foi um sucesso em todos os lugares. Em alguns, a Bíblia foi fortemente proibida. Na Saxônia Albertina, fora da proteção do príncipe-eleitor Frederico III, o Duque Jorge proibiu a impressão e distribuição do livro. Ele tinha ficado ofendido com uma ilustração de Lucas Cranach no livro de Apocalipse, em que a besta de Apocalipse 11 está vestida com a coroa papal. Essa ilustração foi retirada de edições seguintes.

Imprimir a Bíblia era uma profissão de risco. Nessa mesma época, em 1527, o primeiro tipógrafo protestante foi queimado vivo. Em 1556, em Zurique, na Suíça, o Conselho Municipal ordenou a queima de todas as traduções alemãs. Numa única noite, uma grande fogueira com as Bíblias alemãs foi acesa.


Queima das Bíblias de Lutero

Mas, certamente, um dos maiores opositores da tradução de Lutero foi Hieronymus Enser, que em 1523 publicou a obra “Sobre que fundamento a tradução de Lutero do Novo Testamento deve ser proibida ao homem comum”. Nesta obra, diz ter encontrado 1400 erros e mentiras.

Em 1527, no entanto, Enser publica a própria tradução do NT, que, conforme estudiosos, é uma cópia do NT de Lutero.

Por causa das críticas de Enser, Lutero escreve uma “Carta aberta sobre a tradução”, em que defende sua tradução, de forma especial aquela que é o principal alvo dos seus críticos, o fato de ter incluído um “Allein” (“somente”), em Romanos 3.28, ficando “somente a fé”.


Páginas da Bíblia completa de Lutero

Seus críticos o acusam de forçar a tradução conforme sua teologia. Mas Lutero defende que essa é a forma natural da sentença ser dita em alemão com base em sua exegese do texto grego.

Mesmo com tanta dificuldade, com tanta perseguição, com tantas acusações, a  tradução da Bíblia de Lutero é uma das grandes obras-primas da humanidade, foi poderosamente impactante para a Alemanha e inspirou muitos outros movimentos de tradução.

É da boca de um de seus inimigos, Johann Cochlaeus, que ouvimos um belo testemunho dos resultados da tradução:

“Ele (o livro) foi reproduzido e distribuído em tal quantidade pelos tipógrafos que alfaiates e sapateiros, e sim, até mulheres e outros simples idiotas (…) leram-no a fonte de toda verdade. Alguns até carregavam consigo junto ao peito e o memorizavam”

Consulta:

Lendo as Escrituras com os reformadores, Timothy George
Deus despertou Lutero, Gustav Just
A Bíblia e sua história, SBB

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